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Da lavoura à cuia: a cultura da erva-mate no Rio Grande do Sul
A chegada do chimarrão ao Estado e a sua influência na vida do gaúcho
Douglas Carvalho & Paulo Azevedo
Reportagem realizada em Setembro de 2007



Uma tradição que teve inicio com os índios paraguaios, veio para o Estado através dos padres jesuítas e que já passou por ascensões e declínios vive hoje o seu auge. Basta reparar os grupos de amigos e familiares que freqüentam as praças, parques e praias do Rio Grande do Sul para perceber que entre eles geralmente estão circulando uma cuia e uma garrafa térmica. Mas isso não ocorre apenas nesses locais de lazer. Nos escritórios, faculdades, fazendas, agências bancárias e repartições públicas também é comum ver uma cuia passando de mão em mão.

Segundo Manoelito Savaris, presidente da Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), o chimarrão é atualmente o hábito típico mais difundido entre os gaúchos. Logo atrás do famoso chá de erva-mate estão o arroz de carreteiro e o churrasco. O interessante é que esses três hábitos fazem parte da rotina dos gaúchos independente de quais sejam sua faixa etária e classe social.

Seu Manoelito é um defensor e propagador das tradições gaúchas. Ele explica que o mate tradicional deve ser feito em uma cuia de porongo, sorvido com uma bomba (espécie de canudo) de prata com bocal de ouro. A água deve ser fervida até o primeiro chio da chaleira, quando está numa temperatura entre 75 e 78 graus. A erva pode ser a chamada tradicional (mais comum entre os gaúchos), ou a argentina, mais forte e amarga. “Não tenho nada contra o pessoal que coloca açúcar no mate, ou que gosta de cuia de vidro, mas é preciso que fique claro que isso não faz parte da tradição gauchesca”, explica Manoelito. Para ele é importante que a cultura do mate, assim como ele é tomado no Estado, seja preservada, até porque esse hábito teve origem há quase 400 anos.

No início do século XVII, os primeiros padres jesuítas chegaram à América do Sul, na região do Guairá (hoje Leste do Paraguai, Oeste do Estado do Paraná e Sul do Mato Grosso do Sul). À medida que foram convivendo com os índios Guarani e Kaingang, os padres começaram a observar e em alguns casos incorporar os hábitos dos nativos. Um desses costumes era o tererê, um chá feito com erva mate e água fria, e tomado em cuias de porongo com o uso de um canudo de bambu. Até hoje o tererê é muito popular no Paraguai, no Mato Grosso do Sul e no Oeste do Paraná. Os jesuítas, seguindo o exemplo dos ingleses, que tomam o seu chá quente, resolveram esquentar a água do tererê. Começava, então, a nascer o chimarrão assim como nós o conhecemos hoje. No ano de 1626, os padres chegaram ao Rio Grande do Sul, mas não ficaram por muito tempo, já que em 1641 foram expulsos pelos bandeirantes. Mas, em 1682, eles voltaram e, dessa vez, conseguiram se estabelecer no Estado, formando os Sete Povos das Missões.

Aos poucos, os índios locais começaram a gostar do “chá” trazido pelos jesuítas e não demorou muito para que o mate fosse incorporado à sociedade gaúcha. Durante os séculos XVIII e XIX, o chimarrão foi a bebida oficial do gaúcho. No entanto, a partir do início do século XX, o consumo do “mate amargo” começou a entrar em declínio. Na opinião do presidente do IGTF, isso de deu por causa da grande influência dos hábitos americanos e franceses que invadiram o Estado nessa época. Nesse período, o gauchismo estava em declínio, era visto como algo atrasado, conservador.

No ano de 1948, surge o Movimento de Tradições Gaúchas, liderado por Luiz Carlos Barbosa Lessa e por João Carlos Paixão Cortes. A idéia do MTG era resgatar e difundir as tradições típicas do Estado. Entre elas, estava o chimarrão, que, a partir de então, voltou a conquistar adeptos, principalmente entre a população do interior e as pessoas de mais idade. Além de popularizar, o movimento tradicionalista também fortaleceu o lado socializante do mate. Manoelito Savaris destaca que no Uruguai e no Paraguai a bebida é tomada de forma solitária, o que justifica o uso de uma cuia menor. Já no Rio Grande do Sul e na Argentina só se toma chimarrão sozinho quando falta companhia. Mas foi durante a década de 1980, com os festivais de música gauchesca, como a Califórnia da Canção Gaúcha que ocorre até hoje em Uruguaiana, que o mate conquistou os jovens do Estado. A partir de então, o hábito só vem se espalhando entre os gaúchos, onde quer que eles estejam. Hoje em dia, com a melhoria das técnicas de conservação (como a erva embalada em vácuo), é possível encontrar erva de boa qualidade em outros Estados, e até mesmo em outros países. Gaúchos que estão na Califórnia, Europa, Austrália ou Japão podem encontrar o produto em lojas de artigos brasileiros.


A terra do chimarrão

Venâncio Aires conserva os traços de cidade do interior. Distante 130 Km de Porto Alegre, o município ainda mantém recantos onde o tempo parece não passar. Apesar da industrialização, direcionada ao fumo e, claro, à erva-mate, o clima em “Venâncio” (como é mais conhecida) preserva a tranqüilidade do campo e dos ervais.

A cidade se localiza entre os Vales do Taquari e do Rio Pardo. Possui, segundo o último levantamento do IBGE, mais de 60 mil habitantes. Seu nome representa uma homenagem. O jornalista Venâncio de Oliveira Aires foi um esmerado defensor dos ideais republicanos e abolicionistas.

O lugar é conhecido como “a capital nacional do chimarrão”. E o título, se não for merecido, é, pelo menos, levado a sério. Na entrada da cidade e em alguns pontos específicos, podem-se ver esculturas de cuias nos canteiros das vias. O comércio é voltado para o cultivo da erva-mate. Freqüentes são os estabelecimentos que levam nomes sugestivos, sempre referentes à planta ou ao chimarrão. As placas que indicam o nome das ruas também são ornadas pela figura de uma cuia. O verde está nas lavouras e, também, nas costumes de Venâncio Aires.

A cada dois anos, ocorre a Fenachim. É geralmente no mês de maio que o Parque Municipal do Chimarrão abriga a já consagrada Festa Nacional do Chimarrão. O evento vai para sua décima edição em 2008. Apresentações artísticas, exposições industriais e comerciais e mostra cultural integram a programação. E, assim, um outro título se faz presente nesta história. Não para o município, mas para a Fenachim, chamada de “a festa mais completa do Rio Grande”.

O brasão de Venâncio Aires é composto por dois ramos de fumo circundando o símbolo, em cujo interior há duas mãos unidas e uma cuia de chimarrão. Talvez, a presença das mãos signifique a importância das duas culturas que, unidas, contribuem para o crescimento da região. O próprio hino da cidade ratifica: “Nos teus campos tão belos, imensos/ Onde crescem o fumo e o erval/ Na indústria, no teu progresso/ Tu serás do Rio Grande o fanal”. O termo “fanal” significa farol, luzeiro ou, em um sentido mais figurado, guia, norte, estrela. Conforme previa o poeta, Venâncio já é, certamente, a estrela do nosso Estado.

As mudas de seu Manoel

Na região rural de Venâncio Aires fica a Vila Palanque, localidade onde se encontra o Viveiro Florestal do seu Manoel Francisco Canabarro, 64. Para ele, “dentro de alguns anos não terá erva-mate nem para remédio, pois o pessoal hoje em dia só pensa em plantar culturas que dêem um resultado mais imediato, como a soja e o milho”. Recém chegado de uma viagem pelo Mato Grosso e Paraguai, ele conta que as terras plantadas com erva-mate naquela região estão diminuindo cada vez mais.

Seu Manoel fornece mudas para as ervateiras ao preço de 60 centavos cada. Atualmente, é um dos únicos na região que continua fazendo esse trabalho. Conta que quando começou, em 1986, havia mais uns vinte viveiros como o dele, mas hoje em dia tem apenas dois. “Continuo plantando porque alguém tem que fazer isso, mas já faz um tempo que o negócio deixou de ser lucrativo”, conta ele com um sorriso humilde no rosto.

Segundo Manoel a erva mate é uma das plantas mais fortes que existem. Ela é típica do inverno, e a muda leva aproximadamente dois anos para poder ser levada ao campo. A planta não requer muita hidratação, quando cria raiz se nutre com a água contida no solo, que deve ser bastante profundo e úmido. Manoel reclama que os clientes estão sempre com pressa, querem que as mudas fiquem prontas logo, “o pessoal quer coisa rápida, mas não é assim que funciona”.

Mesmo produtos, processos distintos

O chão, vermelho pela terra basáltica, cobre-se de ervais. Em ambos os lados da estrada, vêem-se plantações infindáveis de erva-mate, rodeadas por pés de fumo. É o reaproveitamento do terreno, uma vez que, para os agricultores, não vale a pena investir em apenas uma cultura. No entanto, o agrônomo Giovani Nervo, técnico da Secretaria Municipal de Agricultura de Venâncio Aires, condena a prática. “O fumo é extremamente nocivo à terra. O colono quer lucrar, mas não é assim. A raiz da erva-mate é muito sensível à presença de outras raízes próximas”, explica.

A maior parte do que é colhido naquelas lavouras destina-se às ervateiras, que são as fábricas específicas de erva-mate. Algumas são mais artesanais, utilizando-se ainda de métodos arcaicos de produção. No bairro Linha Travessa, fica a ervateira administrada pelo seu Acelino. Com 65 anos de idade, Acelino Ferreira trabalha com a erva desde os 12. Ele terceiriza o serviço para indústrias que revendem o produto.

O processo de fabricação é rústico e simples. A planta é colhida no erval um dia antes de ir para as máquinas. Os lavradores levam-na até a fábrica dentro de arrobas – cada arroba de erva tem em torno de 15 quilos. No local, as mudas são desempacotadas e lançadas ao aparelho de secagem, onde, primeiro, passam em esteiras sobre um calor muito intenso. A partir daí, a erva-mate é conduzida a um caminho de canos e tubulações até cair em uma nova arroba, pronta para ser vendida. Os galhos que despencam da erva-mate ao final do processo são comercializados para uso em tererês.

Por entre as máquinas, o cheiro forte lembra as rodas de chimarrão de qualquer esquina. Outro ponto que impressiona é o barulho. O maquinário realmente emana um som de trituração. Durante o processo, uma parte da erva-mate é moída com pilão e outra parte, de forma automática.

Não muito longe dali, ergue-se a imponente sede da Madrugada Alimentos Ltda. Com uma produção de 3.500 kg por hora, a empresa tem a capacidade de produzir até 7.500 kg/h. Por entre suas máquinas, o barulho também é intenso e parece não ter fim. Na casa de máquinas, diversos cartazes colados pela parede indicam: “Uso obrigatórios de protetores de ouvidos nesta área”. No entanto, nenhum funcionário que trabalha no local utiliza-se do acessório.

Rendimentos

A árvore de erva-mate leva aproximadamente oito anos para ter uma produção razoável. Isso é provavelmente um dos principais motivos que tem condicionado a substituição da cultura por outras de resultado mais imediato. Segundo estudos da Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/RS), a muda deve ser plantada entre os meses de maio e setembro, em solos profundos e com alto teor de umidade.

Recomenda-se que até o quinto ano apos o plantio o solo seja capinado para a extração de ervas daninhas. A erva-mate precisa de uma área limpa para o seu desenvolvimento. No entanto, depois de estar madura, a planta se torna bastante resistente. Uma das principais inimigas da muda de erva-mate são as chamadas formigas cortadeiras (saúvas e quem-quem), que as atacam no viveiro e no campo. O controle dessa praga deve iniciar antes mesmo do plantio, e o ideal é que seja feito durante todo o ano.

A colheita nas plantações de erva-mate pode ser de dois tipos, tradicional ou sistematizada moderna. A extração em uma lavoura de baixa densidade (1.100 plantas por hectare) pode ser feita a cada dois anos, a cada ano e meio ou até mesmo anualmente. Segundo os técnicos da EMATER/RS, para os diferentes tipos de colheita tradicional, em plantações com 1.100 plantas por hectare, idade média de 30 anos e manejo adequado de solo, é possível se atingir os seguintes rendimentos de toneladas por hectare plantado:

Média: 6.000 kg folha verde/hectare/ano

Máximo: 9.000 kg folha verde/hectare/ano

Mínimo: 3.000 kg folha verde/hectare/ano

As plantações com 1.900 a 4.400 plantas por hectare, utilizam o sistema de colheita sistematizada moderna. Nesses casos, a extração é feita anualmente, e o aproveitamento por hectare é maior do que no método tradicional. Os rendimentos médios das lavouras que utilizam esse sistema são os seguintes:

Media: 8.500 kg folha verde/hectare/ano

Máximo: 12.000 kg folha verde/hectare/ano

Mínimo: 5.100 kg folha verde/hectare/ano

De acordo com o economista Marcelo Gomes, da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, quase 600 municípios brasileiros possuem plantação de erva-mate. As lavouras e a produção costumam gerar 710 mil empregos diretos. Para os agricultores, é uma das poucas opções de emprego e renda na zona rural. Apenas a erva rende, de forma direta, mais de R$ 175 milhões ao ano.

A produção nacional concentra-se, por ordem quantitativa, nos Estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. “Ao todo, mais de 750 empresas se envolvem em todo o processo pelo qual passa a erva-mate”, explica o professor Gomes. A maioria desses empreendimentos é de pequenas empresas, simples ervateiras tais qual a administrada pelo seu Acelino, em Venâncio Aires.

Segundo Gomes, a opção pelo plantio de outras culturas em meio aos ervais é, ainda que nocivo à terra, necessário ao agricultor. Ao contrário do agrônomo Giovani Nervo, ele entende que esse tipo de prática não pode acabar. “Quando a erva não traz rendimentos suficientes, o homem da terra precisa apelar para alguma alternativa. E, em Venâncio Aires, que é a maior produtora de fumo do Brasil, a opção é recorrer à cultura do fumo”, ressalta.

Efeitos para a saúde

A nutricionista Bruna Pontin coordena um projeto de pesquisa que estuda e compara os efeitos da erva-mate e do chá verde em pessoas com problemas de colesterol. Atualmente se sabe que as duas plantas possuem composição nutricional bastante semelhante, e, como o chá verde é enaltecido por suas propriedades antioxidantes e benéficas ao sistema cardiovascular, Bruna resolveu descobrir se o chimarrão também não possuía esses características. Além do mais, seu interesse aumentou quando descobriu que não há pesquisas científicas tratando dos efeitos da bebida naqueles que a consomem.

“Penso que se esta pesquisa puder mostrar que o chimarrão é um hábito saudável, assim como o chá verde é para o povo oriental, que já consome essa bebida há séculos, seria muito interessante. O mate é de fácil acesso, economicamente viável para pessoas de diferentes níveis sociais e já faz parte do hábito cultural do povo gaúcho”, explica a nutricionista.

O chimarrão contém cafeína, minerais, vitaminas (C, B1 e B2) e flavonóides (grupo de substâncias naturais com ação antioxidante no organismo). A cafeína, além de estimular a atividade física e mental, também ajuda no trabalho cardíaco e na circulação do sangue, diminuindo a pressão arterial, pois atua como vasodilatador. Evidências científicas ainda não comprovadas, indicam que a erva-mate pode exercer um efeito antioxidante nas células do organismo, prevenindo alguns tipos de câncer e também o envelhecimento precoce. O chimarrão também combate o mau colesterol e a formação de placas de gordura nas artérias, o que ajuda a evitar doenças cardiovasculares. Não se recomenda o chimarrão para pessoas com insônia ou irritabilidades. Devido as suas características de estimulante, ele pode piorar esses sintomas quando ingerido em grande quantidade. A professora e nutricionista Martine K. Hagen alerta que pacientes com gastrite ou úlcera também devem evitar a ingestão do mate, pois isso agravaria os seus sintomas. Quanto ao perigo de causar câncer de esôfago, Bruna Pontin explica que não é uma característica do chimarrão, e sim de qualquer bebida ingerida em temperatura muito elevada.

Disponível em:http://www6.ufrgs.br/ensinodareportagem/economia/ervamate.html

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